Há alguns anos, começaram a ser divulgadas na esfera virtual algumas versões alternativas do que se intitula ser o diálogo do Pai Nosso na língua aramaica.
Por ser este o idioma falado pela população comum na Judeia do I século, seríamos levados a entender que essas versões (evidentemente traduzidas para uma língua mais conhecida pelas pessoas comuns) correspondam a um texto mais próximo do discurso original de Jesus Cristo e, portanto, tenham maior autenticidade do que os textos preservados na Bíblia cristã, cuja língua-base era o grego.
Atualmente, circulam diferentes versões do Pai-Nosso “original”, todas reclamando ser uma tradução obtida diretamente do aramaico. Em comum, também aparecem alguns termos e conceitos estranhos aos que conhecem a oração tradicional do Pai-Nosso (que pode ser encontrada em Mateus 6.9-13, e levemente simplificada em Lucas 11.2-5), a começar pela evocação a um “Pai-Mãe” do universo (ou do cosmos), e não apenas ao Pai, que está no céu.
Mas há mudanças bem mais, digamos, criativas.
Segundo um dos textos mais popularizados de Pai-Nosso alternativo, o breve trecho do texto tradicional “venha o nós o vosso Reino” passou a ter a seguinte redação: “Nos encha de sua criatividade de forma que sejamos fortalecidos para suportar os encargos de sua missão”[i]. Em outra, o “Pai Nosso que estás nos céus” torna-se o “genitor cósmico de toda radiação e vibração”.[ii]
Mas essas traduções do aramaico (que começaram a aparecer em meados da década de 1990) corresponderiam à versão original do Pai Nosso?
Em diferentes línguas e com poucas variações, o Pai Nosso (ou Oração do Senhor) é uma espécie de prece comum a todos os cristãos, utilizada pelas mais variadas denominações. Assim sendo, essas novas versões trariam o objetivo implícito de invalidar a autenticidade do Pai Nosso bíblico e reaproximá-lo de seu sentido original, através de uma nova tradução a partir do aramaico.
Porém, segundo o parecer dos especialistas, essas versões não correspondem ao significado na língua aramaico. Na realidade, sequer são traduções verdadeiras.
Vejamos um texto completo:
Versão aramaica[iii] | Versão tradicional[iv] | Tradução alternativa[v] |
Abwun d'bwashmaya | Pai nosso que estás nos céus | Pai-mãe do Cosmos |
Nethqadash shehmakh | Santificado seja o teu nome | Traga sua luz para dentro de nós |
Teytey malkuthakh | Venha o teu Reino | Crie seu reinado de unidade agora, por nossos corações em chamas e mãos dispostas |
Nehwey tzevyanach aykanna d'bwashmaya aph b'arha | Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu | Ajude-nos a amar além de nossos ideais e em atos que semeiam compaixão a todas as criaturas |
Hawvlan lachma d'sunqanan yaomana | Dá-nos hoje o pão de cada dia | Anime a terra dentro de nós, para sentirmos a Sabedoria interior sustentar todas as coisas |
Washboqlan khaubayn (wakhtahayn) aykana daph khnan shbwoqan 1'khayyabayn | Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores | Desate nossos nós interiores, para que possamos reatar nossos corações uns aos outros |
Wela tahlan l'nesyuna | E não nos deixeis cair em tentação | Não deixei que as coisas superficiais nos iludam |
Ela patzan min bisha | Mas livrai-nos do mal | Mas nos livre de tudo o nos que oculta ao nosso verdadeiro propósito |
Metol dilakhie malkutha wahayla wateshbukhta l'ahlam almin | Porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre* | Fora de ti, ó incrível fogo, retornando a luz e o som ao Cosmos |
Ameyn | Amém (Assim seja) | Amém |
* Ver observação adicional, no fim deste artigo.
Na realidade, o meio que permite a relativa aceitabilidade dessas versões alternativas é o fato de que a grande maioria das pessoas comuns (falantes do inglês ou português, por exemplo) desconhece inteiramente qualquer coisa a respeito da língua aramaica (ou, como é chamada atualmente pelos historiadores, o siríaco).
Se houvesse maior conhecimento a respeito das línguas de raiz semítica, é certo que esse tipo de tradução não faria o menor sentido (como imagino que não tenha para modernos falantes do árabe ou hebraico, com os quais tem afinidade).
O pesquisador Steve Caruso[vi] reuniu pelo menos quatro dessas traduções disponíveis a partir do aramaico, definindo-as como “espúrias”.
Por mais que o livro do Dr. Neil Douglas-Klotz (Prayers of the Cosmos, 1990) tenha palavras elevadas em favor da compaixão a todas as criaturas, ele não é um especialista em línguas, e sim um místico praticante do sufismo, que justificou a discrepância entre os termos originais e de sua tradução dizendo que “cada palavra em aramaico pode ser interpretada vários modos diferentes."
Essa desculpa lhe dá uma margem de manipulação muito grande para o seu trabalho.[vii]
O Pai-nosso (em aramaico ou qualquer língua) se refere ao Pai ou também a uma figura materna?
Apenas ao Pai.
A palavra aramaica “Ab” (que corresponde ao hebraico “Aba”, nosso conhecido) tem apenas o significado de “pai” – não é um termo neutro, e nem pode ser traduzido como “genitor” e muito menos “pai-mãe”. Junto ao sufixo “wun” (nosso) forma a tradicional evocação “Pai Nosso” – em hebraico, por sua vez, esse termo seria “Avinu”.
Ou Douglas-Klotz procurou um conceito genérico entre a paternidade e a maternidade (talvez para agradar à opinião sensível ao meio feminino) ou quis aproximar a figura de Cristo dos cultos neo-pagãos que evocam a figura da Grande Deusa.
A palavra “shmaya” é cognata ao hebraico “Shameh” (no plural, shamayn), que significa o alto, ou o céu. Assim, “Abwun d'bwashmaya” foi traduzido corretamente como “Pai nosso, que está no céu”.
(para quem buscar uma tradução completa e acurada do Pai-Nosso siríaco, indico a seguinte página, que traz o significado de toda a oração, termo por termo e sem enrolações).
Portanto, Atenção: essas versões da oração de Jesus a partir do aramaico não são traduções! São, na realidade, adaptações criativas do Pai-Nosso a conceitos místicos inteiramente pagãos, sem nenhuma relação histórica ou linguística com Jesus Cristo.
Por outro lado, o desconhecimento generalizado sobre história (sim, sobre história!) também leva muitas pessoas a aceitar passivamente a justificativa batida de que os autores dos evangelhos gregos de Mateus ou Lucas traduziram “mal” as palavras de Jesus.
Existiu alguma interferência política ou eclesiástica para se alterar o conteúdo do Pai-Nosso?
Novamente, a resposta é não.
1. Para começar, não existiram essas descobertas “recentes” de textos aramaicos. Todas essas versões alternativas mostram como fonte aramaica o texto do Pai-Nosso presente na Peshitta, que é a versão da Bíblia utilizada pelas igrejas orientais de língua síria.
Na primeira metade do século XX (nada recente, portanto), quando manuscritos mais antigos da Peshitta (datados de pelo menos o século V, ou antes), houve um aumento do interesse pelas versões em aramaico, mas nenhuma descoberta que alterasse o conteúdo da Bíblia conhecida.
Ainda resta a Versão siríaca antiga, que até o momento se encontra incompleta.
2. Em segundo lugar, a língua original do Novo Testamento é o grego, e não o aramaico.
Em que pese a possibilidade de ter existido um “rascunho” em aramaico, todo o texto do NT foi originalmente escrito em grego, e se desconhece completamente (até o momento) a existência ou mesmo a menção a escritos anteriores em aramaico.
Portanto, qualquer texto do NT em aramaico é uma tradução a partir do grego koiné, que é mais antigo – inclusive a Peshitta. A tese que de foi feita uma translação do Pai-Nosso do aramaico para o grego, ordenada em Niceia, é uma falácia histórica.
3. Em terceiro lugar, a língua siríaca de que servem os autores das novas “traduções” não era o mesmo utilizado por Jesus e pelos apóstolos.
A língua utilizada por Jesus era a variante do aramaico falado na Galileia, e hoje uma língua-morta. Já a língua da Peshitta (e sobrevivente nos bolsões do moderno siríaco, no norte do Eufrates) é o aramaico da Mesopotâmia. Este tem tanto “valor” como língua original do cristianismo quanto o latim, o copta, o inglês ou o português.
Há uma tentativa moderna de se reconstruir o aramaico galileu. Porém, vários séculos separaram definitivamente a evolução dessas duas línguas.
Tanto histórica quanto linguisticamente, as demonstrações em favor da autenticidade das versões alternativas do Pai-Nosso não resistem ao crivo da realidade. É aceitável, sim, que elas podem refletir concepções individuais ou coletivas sobre Deus e do universo, mas a pretensão de que estas correspondam a um sentido atribuído à fala de Cristo se choca diretamente com algumas evidências aqui apresentadas.
Seguimos firmes, rejeitando as fábulas profanas (I Tim 4.7), tanto antigas quanto modernas, afim de exercitarmo-nos mais na fé e na piedade, segundo a vocação do santos.
* Observação adicional:
Os que tem maior familiaridade com o Pai-Nosso “rezado” devem ter percebido que a frase “Porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre” (Mateus 6.13b) não é usual, e é a única frase da oração de Mateus que não consta no texto de Lucas. Alguns defensores das versões alternativas observaram essas diferenças entre os textos bíblicos do Pai-Nosso para argumentar que existiram interpolações, interferências na tradução, etc.
Na realidade, aquela frase não consta até mesmo nas versões de Mateus que utilizam a revisão crítica de Westcott-Hort (que se baseou no texto-tipo alexandrino, em vez do texto majoritário em grego), como é o caso no NTLH. Mas a questão dessa frase (e das diferenças entre os textos) foge ao objetivo desse artigo.
Ela foi mantida, obviamente, porque o texto majoritário (bizantino) é mais próximo ao siríaco e contém a frase sobre o Reino, o poder e a glória. Também consta na siríaca antiga, nas versões coptas e na Vetus Latina. Há uma evidência maior em favor de sua autenticidade. Ela consta na Peshitta e até os tradutores alternativos a mantiveram na oração. Em termos reais, essa é a única diferença entre os textos do Pai-Nosso, que se mantém há séculos. É uma diferença minúscula se comparada com o que, em apenas em alguns anos recentes, foi feito em termos de variações entre as versões alternativas, que é justamente a maior crítica destas em relação ao texto bíblico tradicional.
[i] http://www.joncheres.com/Meditation/series_4__5___6___7.html, acesso em 16/03/2010.
[ii] http://www.spiritpath-healing.com/ReadingMaterial.html, acesso em 16/03/2010.
[iii] Texto do Pai Nosso no livro de Mateus, conforme a versão siríaca da Bíblia.
[iv] O mesmo texto de Mateus, segundo a NVI (Nova Versão Internacional) em português.
[v] Tradução livre do inglês da versão do Dr. Neil Douglas-Klotz.
[vii] Há dezenas de variantes do Pai-Nosso aramaico obtidas a partir da “tradução” de Douglas-Klotz, como por exemplo uma que se expressa assim: Oh Vida que Respira, o teu Nome brilha em toda parte! Dispõe de um espaço para plantar aqui a tua presença. Prevê o teu "eu posso" agora. Corporifica o teu desejo em cada luz e forma. Cresce por meio de nós o pão e a sabedoria deste momento. Desata os laços do fracasso a nos amarrarem, como nós soltamos as cordas que seguramos das faltas de outrem. Ajuda-nos a não esquecer nossa Fonte. Mas livra-nos de não estarmos no Presente. De Ti surge toda a Visão, Poder e Canção. De reunião em reunião. Amém!