21/07/2023

Pai Nosso em Aramaico

 

 

Há alguns anos, começaram a ser divulgadas na esfera virtual algumas versões alternativas do que se intitula ser o diálogo do Pai Nosso na língua aramaica.

Por ser este o idioma falado pela população comum na Judeia do I século, seríamos levados a entender que essas versões (evidentemente traduzidas para uma língua mais conhecida pelas pessoas comuns) correspondam a um texto mais próximo do discurso original de Jesus Cristo e, portanto, tenham maior autenticidade do que os textos preservados na Bíblia cristã, cuja língua-base era o grego.

Atualmente, circulam diferentes versões do Pai-Nosso “original”, todas reclamando ser uma tradução obtida diretamente do aramaico. Em comum, também aparecem alguns termos e conceitos estranhos aos que conhecem a oração tradicional do Pai-Nosso (que pode ser encontrada em Mateus 6.9-13, e levemente simplificada em Lucas 11.2-5), a começar pela evocação a um “Pai-Mãe” do universo (ou do cosmos), e não apenas ao Pai, que está no céu.

Mas há mudanças bem mais, digamos, criativas.

Segundo um dos textos mais popularizados de Pai-Nosso alternativo, o breve trecho do texto tradicional “venha o nós o vosso Reino” passou a ter a seguinte redação: “Nos encha de sua criatividade de forma que sejamos fortalecidos para suportar os encargos de sua missão[i]. Em outra, o “Pai Nosso que estás nos céus” torna-se o “genitor cósmico de toda radiação e vibração”.[ii]

Mas essas traduções do aramaico (que começaram a aparecer em meados da década de 1990) corresponderiam à versão original do Pai Nosso?

Em diferentes línguas e com poucas variações, o Pai Nosso (ou Oração do Senhor) é uma espécie de prece comum a todos os cristãos, utilizada pelas mais variadas denominações. Assim sendo, essas novas versões trariam o objetivo implícito de invalidar a autenticidade do Pai Nosso bíblico e reaproximá-lo de seu sentido original, através de uma nova tradução a partir do aramaico.

Porém, segundo o parecer dos especialistas, essas versões não correspondem ao significado na língua aramaico. Na realidade, sequer são traduções verdadeiras.

Vejamos um texto completo:

Versão aramaica[iii]

Versão tradicional[iv]

Tradução alternativa[v]

Abwun d'bwashmaya

Pai nosso que estás nos céus

Pai-mãe do Cosmos

Nethqadash shehmakh

Santificado seja o teu nome

Traga sua luz para dentro de nós

Teytey malkuthakh

Venha o teu Reino

Crie seu reinado de unidade agora, por nossos corações em chamas e mãos dispostas

Nehwey tzevyanach aykanna d'bwashmaya aph b'arha

Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu

Ajude-nos a amar além de nossos ideais e em atos que semeiam compaixão a todas as criaturas

Hawvlan lachma d'sunqanan yaomana

Dá-nos hoje o pão de cada dia

Anime a terra dentro de nós, para sentirmos a Sabedoria interior sustentar todas as coisas

Washboqlan khaubayn (wakhtahayn) aykana daph khnan shbwoqan 1'khayyabayn

Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores

Desate nossos nós interiores, para que possamos reatar nossos corações uns aos outros

Wela tahlan l'nesyuna

E não nos deixeis cair em tentação

Não deixei que as coisas superficiais nos iludam

Ela patzan min bisha

Mas livrai-nos do mal

Mas nos livre de tudo o nos que oculta ao nosso verdadeiro propósito

Metol dilakhie malkutha wahayla wateshbukhta l'ahlam almin

Porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre*

Fora de ti, ó incrível fogo, retornando a luz e o som ao Cosmos

Ameyn

Amém (Assim seja)

Amém

* Ver observação adicional, no fim deste artigo.

Na realidade, o meio que permite a relativa aceitabilidade dessas versões alternativas é o fato de que a grande maioria das pessoas comuns (falantes do inglês ou português, por exemplo) desconhece inteiramente qualquer coisa a respeito da língua aramaica (ou, como é chamada atualmente pelos historiadores, o siríaco).

Se houvesse maior conhecimento a respeito das línguas de raiz semítica, é certo que esse tipo de tradução não faria o menor sentido (como imagino que não tenha para modernos falantes do árabe ou hebraico, com os quais tem afinidade).

O pesquisador Steve Caruso[vi] reuniu pelo menos quatro dessas traduções disponíveis a partir do aramaico, definindo-as como “espúrias”.

Por mais que o livro do Dr. Neil Douglas-Klotz (Prayers of the Cosmos, 1990) tenha palavras elevadas em favor da compaixão a todas as criaturas, ele não é um especialista em línguas, e sim um místico praticante do sufismo, que justificou a discrepância entre os termos originais e de sua tradução dizendo que “cada palavra em aramaico pode ser interpretada vários modos diferentes."

Essa desculpa lhe dá uma margem de manipulação muito grande para o seu trabalho.[vii]


O Pai-nosso (em aramaico ou qualquer língua) se refere ao Pai ou também a uma figura materna?

Apenas ao Pai.

A palavra aramaica “Ab” (que corresponde ao hebraico “Aba”, nosso conhecido) tem apenas o significado de “pai” – não é um termo neutro, e nem pode ser traduzido como “genitor” e muito menos “pai-mãe”. Junto ao sufixo “wun” (nosso) forma a tradicional evocação “Pai Nosso” – em hebraico, por sua vez, esse termo seria “Avinu”.

Ou Douglas-Klotz procurou um conceito genérico entre a paternidade e a maternidade (talvez para agradar à opinião sensível ao meio feminino) ou quis aproximar a figura de Cristo dos cultos neo-pagãos que evocam a figura da Grande Deusa.

A palavra “shmaya” é cognata ao hebraico “Shameh” (no plural, shamayn), que significa o alto, ou o céu. Assim, “Abwun d'bwashmaya” foi traduzido corretamente como “Pai nosso, que está no céu”.

(para quem buscar uma tradução completa e acurada do Pai-Nosso siríaco, indico a seguinte página, que traz o significado de toda a oração, termo por termo e sem enrolações).

Portanto, Atençãoessas versões da oração de Jesus a partir do aramaico não são traduções! São, na realidade, adaptações criativas do Pai-Nosso a conceitos místicos inteiramente pagãos, sem nenhuma relação histórica ou linguística com Jesus Cristo.

Por outro lado, o desconhecimento generalizado sobre história (sim, sobre história!) também leva muitas pessoas a aceitar passivamente a justificativa batida de que os autores dos evangelhos gregos de Mateus ou Lucas traduziram “mal” as palavras de Jesus.

Segundo uma das fontes que apresenta a forma alternativa de oração, o texto original do Pai-Nosso sofreu “mudanças dramáticas” a partir de Constantino, em 325 d.C., quando passou do aramaico para o grego, e deste para o latim e depois às línguas modernas. Então, descobertas recentes de manuscritos permitiram desvendar esse sentido oculto e inteiramente novo do Pai-Nosso de Jesus.

Existiu alguma interferência política ou eclesiástica para se alterar o conteúdo do Pai-Nosso?

Novamente, a resposta é não.

1. Para começar, não existiram essas descobertas “recentes” de textos aramaicos. Todas essas versões alternativas mostram como fonte aramaica o texto do Pai-Nosso presente na Peshitta, que é a versão da Bíblia utilizada pelas igrejas orientais de língua síria.

Na primeira metade do século XX (nada recente, portanto), quando manuscritos mais antigos da Peshitta (datados de pelo menos o século V, ou antes), houve um aumento do interesse pelas versões em aramaico, mas nenhuma descoberta que alterasse o conteúdo da Bíblia conhecida.

Ainda resta a Versão siríaca antiga, que até o momento se encontra incompleta.

2. Em segundo lugar, a língua original do Novo Testamento é o grego, e não o aramaico.

Em que pese a possibilidade de ter existido um “rascunho” em aramaico, todo o texto do NT foi originalmente escrito em grego, e se desconhece completamente (até o momento) a existência ou mesmo a menção a escritos anteriores em aramaico.

Portanto, qualquer texto do NT em aramaico é uma tradução a partir do grego koiné, que é mais antigo – inclusive a Peshitta. A tese que de foi feita uma translação do Pai-Nosso do aramaico para o grego, ordenada em Niceia, é uma falácia histórica.

3. Em terceiro lugar, a língua siríaca de que servem os autores das novas “traduções” não era o mesmo utilizado por Jesus e pelos apóstolos.

A língua utilizada por Jesus era a variante do aramaico falado na Galileia, e hoje uma língua-morta. Já a língua da Peshitta (e sobrevivente nos bolsões do moderno siríaco, no norte do Eufrates) é o aramaico da Mesopotâmia. Este tem tanto “valor” como língua original do cristianismo quanto o latim, o copta, o inglês ou o português.

Há uma tentativa moderna de se reconstruir o aramaico galileu. Porém, vários séculos separaram definitivamente a evolução dessas duas línguas.

Tanto histórica quanto linguisticamente, as demonstrações em favor da autenticidade das versões alternativas do Pai-Nosso não resistem ao crivo da realidade. É aceitável, sim, que elas podem refletir concepções individuais ou coletivas sobre Deus e do universo, mas a pretensão de que estas correspondam a um sentido atribuído à fala de Cristo se choca diretamente com algumas evidências aqui apresentadas.

Seguimos firmes, rejeitando as fábulas profanas (I Tim 4.7), tanto antigas quanto modernas, afim de exercitarmo-nos mais na fé e na piedade, segundo a vocação do santos.


* Observação adicional:

Os que tem maior familiaridade com o Pai-Nosso “rezado” devem ter percebido que a frase “Porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre” (Mateus 6.13b) não é usual, e é a única frase da oração de Mateus que não consta no texto de Lucas. Alguns defensores das versões alternativas observaram essas diferenças entre os textos bíblicos do Pai-Nosso para argumentar que existiram interpolações, interferências na tradução, etc.

Na realidade, aquela frase não consta até mesmo nas versões de Mateus que utilizam a revisão crítica de Westcott-Hort (que se baseou no texto-tipo alexandrino, em vez do texto majoritário em grego), como é o caso no NTLH. Mas a questão dessa frase (e das diferenças entre os textos) foge ao objetivo desse artigo.

Ela foi mantida, obviamente, porque o texto majoritário (bizantino) é mais próximo ao siríaco e contém a frase sobre o Reino, o poder e a glória. Também consta na siríaca antiga, nas versões coptas e na Vetus Latina. Há uma evidência maior em favor de sua autenticidade. Ela consta na Peshitta e até os tradutores alternativos a mantiveram na oração. Em termos reais, essa é a única diferença entre os textos do Pai-Nosso, que se mantém há séculos. É uma diferença minúscula se comparada com o que, em apenas em alguns anos recentes, foi feito em termos de variações entre as versões alternativas, que é justamente a maior crítica destas em relação ao texto bíblico tradicional.



[iii] Texto do Pai Nosso no livro de Mateus, conforme a versão siríaca da Bíblia.

[iv] O mesmo texto de Mateus, segundo a NVI (Nova Versão Internacional) em português.

[v] Tradução livre do inglês da versão do Dr. Neil Douglas-Klotz.

[vii] Há dezenas de variantes do Pai-Nosso aramaico obtidas a partir da “tradução” de Douglas-Klotz, como por exemplo uma que se expressa assim: Oh Vida que Respira, o teu Nome brilha em toda parte! Dispõe de um espaço para plantar aqui a tua presença. Prevê o teu "eu posso" agora. Corporifica o teu desejo em cada luz e forma. Cresce por meio de nós o pão e a sabedoria deste momento. Desata os laços do fracasso a nos amarrarem, como nós soltamos as cordas que seguramos das faltas de outrem. Ajuda-nos a não esquecer nossa Fonte. Mas livra-nos de não estarmos no Presente. De Ti surge toda a Visão, Poder e Canção. De reunião em reunião. Amém!

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tom caet